Este é mais um extraordinário artigo de autoria do Desembargador do TJPE Nivaldo Mulatinho, que além de excelente magistrado, enobrece o nosso Poder Judiciário por ser, acima de tudo, um exemplo de ser humano, uma pessoa de aguçada sensibilidade, um apreciador da literatura...
Monica Rodrigues & Moraes JVZ - Jurisdição da Paz
“Sinto muito, mas não pretendo ser imperador. Não é esse o
meu ofício. Não quero governar, nem conquistar ninguém. Gostaria de ajudar a
todos. Judeus, gentios, negros, brancos (…) O caminho da vida pode ser o da
liberdade e da beleza, mas nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma dos
homens – formou uma barricada de ódio no mundo – e nos conduz, marchando, à
miséria e ao derramamento de sangue. Desenvolvemos as engrenagens, mas nelas
nos perdemos. As máquinas que dão abundância nos deixaram carentes. Nosso
conhecimento nos deixou a todos cínicos, nossa engenhosidade nos faz rudes.
Pensamos demais e sentimos muito pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de
humanidade. Mais do que de esperteza, precisamos de afeições e delicadeza. Sem
essas qualidades, a vida será violenta e todos nós estaremos perdidos”
(Palavras do barbeiro judeu no discurso final de “O Grande Ditador”, que dura
seis minutos no filme).
O ditador alemão Adolf Hitler
Adolf Hitler era fã de cinema. Seu assecla mais próximo,
Joseph Goebbels, também. E, nomeado Ministro da Propaganda e Informação,
Goebbels logo convocou FRITZ LANG, o diretor de “Metropolis” (de 1927, hoje um
marco estético da arte cinematográfica) para supervisionar as produções
alusivas ao Terceiro Reich, embora o governo nazista tivesse censurado “O
Testamento do Doutor Mabuse”, filme de 1933, onde LANG tece um paralelo entre a
loucura e o poder ditatorial. Calculem. É assim: os tiranos adoram censurar.
Mas precisam aparecer muito, sempre e sempre. Precisam de artistas. Sejam eles
áulicos ou não. Sejam fanáticos ou não. Conta-se que FRITZ LANG, que era filho
de mãe judia, agradeceu o convite do Ministro de Hitler, fingindo-se
lisonjeado, e, quase de imediato, com um nome falso e sem usar o seu
inconfundível monóculo, fugiu para Paris. Em 1940, LANG estava em Hollywood,
onde viviam outros artistas fugitivos, como BILLY WILDER e BERTOLT BRECHT. E lá
estava também CHARLES SPENCER CHAPLIN, na época, sem dúvida, o mais célebre
artista vivo do mundo, criador do adorável Vagabundo que chamamos Carlitos, o
nome definitivo da Sétima Arte, depois de uma série iniciada em 1914, em
especial a partir da película muda chamada “Vida de Cachorro” (media-se assim:
2.674 pés), lançada em 14 de abril de 1918.
É no mês de abril, em 1889, que nascem CHARLES CHAPLIN e
Hitler, nos dias 16 e 20, respectivamente. Quatro dias separam dois pólos
opostos da humanidade, escreveu DAVID ROBINSON, na mais densa e analítica obra
sobre a arte e a vida do criador de “Luzes da Ribalta” – livro de 1985, só
lançado no Brasil em 2011.
Sabemos que, a partir dos primeiros sucessos, CARLITOS
suscitou diversos imitadores. Um deles, não figura em nenhuma lista. Sua
celebridade, porém, não parou de crescer, a partir dos anos de 1932-1933,
alcançando, rapidamente, a do “little tramp” de “Em Busca do Ouro” (filme de
1925), e talvez ultrapassando-a, em outra escala. Afinal, em 1938, era visto
como o salvador da Alemanha e um possível salvador da Civilização Ocidental
(que tinha sofrido a Primeira Guerra Mundial e o desastre financeiro de 1929).
Ele era o ex-agitador político austríaco chamado Adolf Hitler. E pode ser que
tenha cometido a imprudência de imitar CARLITOS, como disse o crítico francês
ANDRÉ BAZIN, sob o efeito de “influências sociológicas inconscientes” e sem
qualquer segunda intenção pessoal. Mas, ao roubar o bigode de CARLITOS, Hitler
entregou-se “de pés e mãos atadas” a CHARLES CHAPLIN.
Charles Chaplin representa Hitler no filme O Grande Ditador
Em “O Grande Ditador”, o primeiro filme inteiramente falado
de CHAPLIN, o tema supera as dimensões do próprio CARLITOS, que assume a
identidade de um barbeiro judeu. Ele acaba ocupando o lugar do seu sósia, o
ditador Hynkel, da fictícia Tomânia, um homem que deseja ser o Imperador do
Mundo (“Ou César ou nada”, diz Hynkel, brincando, amoroso, com um globo
terrestre, numa das cenas mais extraordinárias do humor em todos os tempos). É
uma assombrosa e corrosiva caricatura de Adolf Hitler. CHAPLIN conseguiu unir a
paródia a um impressionante realismo. Escrevendo o roteiro entre 1937 e 1938,
ele viu os noticiários filmados da época, copiando os gestos de ópera bufa
(diríamos hoje) do líder nazista. Zombaria absoluta. Até os microfones se
curvam, medrosos, diante dos gritos em forma de discurso do homem que desejava
ser o Chefão dos povos.
Só que, por trás de toda essa comicidade, essa sátira
demolidora, CHAPLIN estampa o cenário histórico que o mundo já vivia e iria
ainda viver, dramaticamente. O palhaço CARLITOS, um malandro cheio de piruetas,
um protagonista desajeitado e sentimental, que dialogava ferozmente com o seu
tempo, denunciando, sem moralismos, a ordem estabelecida, virou um profeta, um
anunciador da barbárie.
Em uma das partes bem características de “O Grande Ditador”,
um dos Ministros do ditador Hynkel anuncia, maravilhado, a descoberta de um gás
que, segundo ele, “matará a todos”. Em 1938, a Alemanha já tinha 30 mil judeus
em campos de concentração. No Documentário, editado em 2003, que faz parte dos
extras da nova série de DVD’S, lançada agora sobre toda a filmografia do
criador de “Tempos Modernos”, o cineasta grego COSTA-GAVRAS registra o lado
visionário de CHARLES CHAPLIN, dissecando a época do lançamento de “O Grande
Ditador” (outubro de 1940), tempo em que Hitler e Mussolini estavam no auge de
suas glórias políticas e das suas aparências heróicas. A fala de GAVRAS, que
ganhou destaque no cenário internacional com o filme “Z”, de 1969, denunciador
da ditadura militar na Grécia, nos anos 60, é um régio presente para os que
amam CHAPLIN, ou seja, o próprio Cinema. E também para os que apreciam uma
discussão séria sobre os fatos e as personalidades do Conflito de 1939-1945.
Em 1940, os Estados
Unidos tentavam manter uma olímpica neutralidade em relação ao que acontecia na
Europa. O governo norte-americano tinha uma vigilância sobre a produção
cultural do país. Mas Hitler e Mussolini expandiam seus impérios. Organizações
nazi-fascistas eram criadas na América. Hollywood, como um todo, fazia seus
filmes e cerca de um terço do lucro vinha do exterior. Os estúdios não queriam
perder o mercado da Itália e da Alemanha. Mas a timidez de Hollywood em relação
ao nazismo não deixava de ser uma consequência de seus sentimentos
antissemitas. Disseminados, intensos. Muito mais do que hoje é lembrado ou
reconhecido. Os judeus eram totalmente excluídos da maioria dos cargos
executivos. Havia cotas que limitavam o número deles em muitos clubes,
universidades e corporações, como relata OTTO FRIEDRICH, em “A Cidade das
Redes”, um livro sobre a chamada Capital do Cinema, nos anos 40.
A estreia oficial de “O Grande Ditador” ocorreu em Nova
Iorque, no dia 11 de outubro de 1940. Um sucesso absoluto. Com as finanças e a
popularidade em dia, CHAPLIN foi intimado para depor diante de uma improvisada
Subcomissão do Senado sobre propaganda de guerra, em 1941. O filme também deu a
ele, nos arquivos do FBI, o singular apelido de “antifascista prematuro”. Na
terminologia da época, assinala STEPHEN WEISSMAN, esse era um eufemismo para
carimbar alguém que, com tendências esquerdistas, não era membro do Partido
Comunista. Na verdade, os pontos de vista apaixonadamente antinazistas de
CHAPLIN foram bem claros desde o final da década de 30 até o fim da guerra,
nunca mudaram. Mas a relação dos Estados Unidos com a Rússia e a Alemanha, sim.
Durante os anos do pacto Hitler-Stalin, a posição oficial norte-americana era
isolacionista, e o discurso final da narrativa sobre o Ditador da fictícia
Tomânia foi visto como um incentivo à guerra. Antes do Conflito Mundial, o
Partido Comunista Americano e o American First Comittee, de direita, estavam
juntos na férrea oposição à possibilidade do país combater a Alemanha. Foi
exatamente nesse período que CHAPLIN filmou e fez o lançamento mundial de “O
Grande Ditador”.
Em Londres, o filme estreou em 16 de dezembro de 1940, no
auge dos bombardeios nazistas. A população civil sofria. CHURCHILL captou
aquele momento crítico em uma de suas frases memoráveis, quando a batalha aérea
era tenebrosa, em 20 de agosto de 1940: “Nunca na história dos conflitos
humanos tantos deveram tanto a tão poucos”.
Para os britânicos, é certo, o filme foi um imenso júbilo.
Hitler era um inimigo muito real. Acima de tudo, assinala DAVID ROBINSON, “eles
amavam a piada primordial da semelhança física entre o velho Adolf e o homem
mais engraçado do mundo”. CHAPLIN “é o único artista que detém a arma secreta
da risada mortal”, escreveu, naquele momento, o comentarista RUDOLPH ARNHEIM,
que era, então, um fugitivo recente da Alemanha.
O discurso final do barbeiro judeu, no qual a direita sentiu
“vestígios de comunismo” e a esquerda encontrou puro sentimentalismo, nunca
desagradou ao chamado grande público. Ao contrário. Foi largamente citado e
impresso onde o filme foi exibido. E, na Inglaterra, o Partido Comunista o
colocou em um panfleto especial. Basta dizer isso. No Brasil, em 1941, a
exibição de “O Grande Ditador” fez o Major Coelho dos Reis, um diretor do DIP,
de Vargas, ver cenas “definitivamente comunistas e desmoralizadoras das Forças
Armadas”. O filme foi proibido (Leia-se a nota final).
Em pleno século XXI, nenhuma das frases do discurso judeu,
que se dirige, em primeiro lugar, ao emblema de coragem e rebeldia do filme,
que é a jovem HANNAH, perdeu o seu valor. Precisamos até de todo aquele
otimismo, meio ingênuo, e daquela esperança, completamente viva, das suas
linhas finais. Precisamos da mensagem de CHAPLIN. Para continuarmos a luta pela
nossa causa. E não resta nenhuma outra a não ser a mais antiga de todas. Ela é,
como diria a outra HANNAH, a HANNAH ARENDT, a única, de fato, que desde o
início determina a própria existência da política: a causa da liberdade em
oposição à tirania.
Para o Professor José Oliveira Santos, que, permitam o
termo, foi meu Promotor de Justiça.
Nota Final – Cito o livro do pesquisador e jornalista INIMÁ
SIMÕES, “Roteiro da Intolerância – A Censura Cinematográfica no Brasil”,
publicação da Editora SENAC (São Paulo), em parceria com a Editora Terceiro
Nome, de 1999, p. 28. O livro mostra como foi a censura de filmes no país, em
especial no período do Regime de 1964, definindo-a como um organismo executor
de orientação da alta hierarquia militar. Aos possíveis leitores, trago os
nomes de livros essenciais, referidos no artigo, sobre o genial cineasta.
“Chaplin, uma Biografia definitiva”, de DAVID ROBINSON, Editora Novo Século,
São Paulo, 2001, e “Chaplin. Uma Vida”, de STEPHEN WEISSMAN, escritor e
psiquiatra, Editora Larousse do Brasil, 2010. Ainda a autobiografia de CHAPLIN,
“Minha Vida” (tenho a 10ª edição do livro da Editora José Olímpio, Rio, 1998).
E o magnífico livro de OTTO FRIEDRICH, “As Cidades das Redes”, uma história
social e cultural dos anos 40 em Hollywood, Companhia das Letras, São Paulo,
1988 (acredito que seja a única edição feita no Brasil).
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